Em favor do exercício ético da Medicina


Um autor e sua preocupação com as toxicofilias

A vida humana uma lógica médico-legal

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Um autor e sua preocupação com as toxicofilias    


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Genival Veloso de França

Ninguém melhor do que Mário Moura Resende poderia escrever sobre a "Toxicomania entre os Jovens". Não só por sua longa e atormentada passagem pelo Juizado de Menores na capital da Paraíba e por sua dedicação no ensino da Disciplina de Direito do Menor na Escola de Direito de Campina Grande - Universidade Regional do Nordeste senão, mas ainda por sua visão profundamente humanística do problema. Mesmo que não tenhamos, eu e ele, aqui e ali, a mesma opinião sobre o assunto, isso não altera meu respeito ao seu enfoque honesto e cuidadoso sobre o tema, e ao esforço do bem servir.

O fato é que se vive num mundo mergulhado na intolerância e na indiferença, quando a civilização de consumo lança o homem numa luta cada vez mais desigual entre as necessidades estimuladas e as possibilidades de satisfação duramente limitadas num trágico abismo entre o Ideal e o Real.

A sociedade burguesa, inclemente, geradora de conflitos e tão falsamente democrática, mantém uma obstinada e permanente luta em favor dos seus interesses mais egoísticos.

A estrutura social injusta cria profundos desníveis, ferindo a comunidade de forma impiedosa e perversa, num modelo de violência e de criminalidade que assustadora e nos flagela a todos.

A família, instituição tradicional, fator de equilíbrio e sustentação da sociedade, passou a ser atingida por uma série de acontecimentos e situações que a fizeram mudar de rumos, talvez como forma de sobrevivência.

E no meio desse tumulto, atordoada e perdida, esta a juventude.

O que coube a juventude

O jovem de hoje é um angustiado. Suas necessidades fundamentais, marginalizadas pelas frustrações e desanimadas pelo que espera do futuro, levam-no a dois caminhos inevitáveis: a agressão e a fuga da realidade. Mas já se observa uma revolução na mentalidade desses jovens, como quem se organiza para enfrentar uma nova ardem e uma nova era. Isso não aconteceu com o adulto. Ele continua relutante em aceitar as inovações e comporta-se de forma contraditória. A própria mentalidade contestadora da juventude e a resposta às guerras inúteis, as falsas promessas e a postura duvidosa dos mais velhos, que nem sempre são estimados pelo próprio exemplo. O que chamamos de "erro" de conduta, muitas vezes, constitui a solução que os jovens encontraram para resolver um tipo de problema cuja porta de saída não lhes foi mostrada. E o que se passou a chamar de "crise da juventude" nada mais é que a postura de uma sociedade em conflito a exigir dos mais novos adaptação e conformismo aos sistemas de valores ultrapassados, e que não mais respondem aos interesses da gente nova.

Fugir, eis a saída.

A verdade é que uma parte da juventude, angustiada e deprimida, ávida de inovações e impregnada de sexo deturpado e erotismo pelos mais diversos meios de divulgação, não pode deixar de se arrastar na tentação inevitável do mundo das drogas.

Em alguns países o problema já amedronta. Na Suécia 30% dos jovens na faixa de 16 anos são toxicômanos declarados. No Canadá identificou-se viciados aos oito anos de idade. A metade dos estudantes dos Estados Unidos, em nível de college e de Universidade, já experimentaram a maconha. No Brasil, embora os casos de notificações, internamentos e prisões sejam estatisticamente irrisórios, já se revela acentuada a dimensão do problema. Mesmo assim, o assunto vem sendo discutido apenas de forma sensacional e distorcida, e com tentativas de solução discriminativas e policialescas. Não existe ainda uma consciência segura nem uma proposta mais cuidadosa capazes de tranqüilizar a população.

Não se diga, por exemplo, que a questão seja somente de ordem econômica. Não. Ela é muito complexa, mas, no fundo mesmo, é uma maneira de fuga e repúdio que se prega como modelo de salvação e de liberdade, mas que na verdade  nem salva nem liberta.

0 que a medicina não fez

O tratamento médico do viciado, malgrado um ou outro esforço, e repressivo e discriminador. Limita-se ao confinamento e a desintoxicação do paciente. Livra a família da presença do drogado por algum tempo e trata dos sintomas da intoxicação, como quem adia o encontro com a realidade.

Ninguém chega a ser viciado a não ser por conflitos internos ou por dificuldades de convivência em seu meio. Muitas vezes é a própria sociedade que indiretamente induz ao vício ou se satisfaz com uma juventude drogada, pois para ela, a sociedade, que vive a reprimir e sufocar algumas manifestações de protesto, é muito mais cômodo uma juventude que se aliene do processo político, por exemplo. Para determinadas consciências é mais fácil aceitar um posicionamento "doentio", que admitir atitudes divergentes. Desse modo, o tóxico só passa a perturbar os objetivos da classe dominante quando existem implicações político-ideológicas. A prova é que, antes de se organizar um sistema de caráter profilático, municiou-se o aparelho policial e judiciário de uma  mentalidade repressora, por interesses exclusivamente do poder, esquecendo-se dos órgãos pedagógicos e sanitários, certamente pelo interesse secundário na recuperação do viciado.

Como as toxicomanias vêm sendo inseridas entre os problemas psiquiátricos, os médicos vão ficando com a responsabilidade da questão, pois foi melhor para o aparelho policial livrar-se dos drogados como “doentes". O pior é que alguns facultativos terminam aceitando tal missão. Isso, no entanto, não retira do médico sua especifica atuação, contanto que ele se coloque como um cientista do comportamento e entenda que o problema é social e não uma doença. É como afirma Torrey: "O importante é não medicalizar os problemas sociais".

Não há melhor maneira de se fugir "do  por que alguém é viciado?" que considerá-lo um "enfermo". Com esse enfoque, o modelo médico não fez outra coisa senão ampliar o vício. Sendo ele um "doente", foi considerado irresponsável. Isso satisfaz uma parte dos viciados. Todavia, se eles fossem responsáveis pelo próprio vício - como alternativa de resolver seus problemas existenciais, talvez a questão apresentasse outros rumos. O modelo é falsamente protecionista.

O draconismo da lei

Acredito que alguns equívocos cometidos em torno da regulamentação de uma lei antitóxico fluíram do seio das melhores intenções.

A legislação brasileira específica quanto aos tóxicos, desde o Decreto nº 4.294, de 6 de julho de 1921, à recente Lei nº 6.368, de 21 de outubro de 1976, vem editando normas que, se humanizam a questão - o que é em favor do drogado, ainda assim não deixam de considerá-lo infrator, mesmo dando-lhe a classificação de "doente". É absurdo que um indivíduo apenas pelo fato de consumir determinada droga, sem nenhuma repercussão sobre o todo social, tenha de receber a pecha de criminoso. Até mesmo o experimentador (usuário eventual ou curioso) não escapa a pena de seis meses a dois anos de detenção ou o pagamento de 20 a 50 dias-multa.

É temerário estender a lei repressora a tanta amplitude, mesmo que ela vise um fim curativo, preventivo ou recuperador. Pune o "uso indevido", o que não é e nem poderia ser enquadrado como ato delituoso. Seria o caso de punir-se o uso do álcool e do fumo que evidentemente é também mau.

Ninguém omite os problemas que podem advir do uso dos tóxicos no relacionamento social e na saúde física e mental do viciado. No entanto, partir dai com um conceito rígido de "ilícito" é subverter o próprio sistema penal. É fundar-se no princípio de que "o poder faz o direito".

Dizer-se que um viciado é um elemento de indiscutível periculosidade é outro absurdo, pois o número de delitos cometidos pelos toxicômanos é muito menor que entre os alcoolatras, e em ambos menos expressivos que entre os tipos "normais".

Só se pode entender como fato punível a ação criminal contra outrem ou contra o patrimônio público ou particular. Por que não se processar um alcoólatra crônico ou um fumante inveterado? Em que se baseia a lei para punir um viciado de nenhum poder aliciador e incapaz de criar embaraços à ordem pública? O fato e que o consumidor da droga ganhou falso carisma, cercado de idéias discriminadoras e de preconceito insosso. Dizer-se, ainda, que o bem jurídico protegido é a saúde pública e que o sujeito passivo é a coletividade, é dar a lei um sentido muito caprichoso e um limite indefinido.

Vejamos o exagero: Se um individuo é flagrado, por exemplo, conduzindo um cigarro de maconha, mesmo que ele não seja um consumidor, terá de admitir que o é, para não ser implicado como traficante. E se ele alegar ainda que é um dependente, a pena será substituída pelo tratamento em regime extra-hospitalar. E mais: a mesma lei que condena como crime o uso do tóxico, da ao viciado criminoso de outro delito o caráter atenuante ou excludente, se o agente não poderia entender a essência delictual do fato ou determinar-se de acordo com esse entendimento. Aqui, o aspecto específico do crime de toxicomania é relegado em face de outro delito cometido. Se ele era totalmente incapaz de entender o caráter ilícito do fato criminoso, passa a ser irresponsável pelo uso da droga e por outra qualquer infração penal praticada.

Pela recuperação personalizada e ressocializante

Não se discute o bem que se pode fazer a um viciado quando se lhe oferece um meio adequado de recuperação. A experiência tem demonstrado que o melhor tratamento é o ambulatorial e não a segregação compulsória e automática. A internação seria apenas uma medida de exceção, por vontade própria do toxicômano ou nos casos de indiscutível necessidade clínica.

Se já admitimos que a causa do vício não e o tóxico, mas uma série de problemas existenciais que afloram através de um estilo de vida, o primeiro de todos os cuidados seria a prevenção. E esta deve começar pela inclusão de temas sobre o assunto, já nos cursos de 1° grau e nos cursos de formação de professores, alertando-se para os inconvenientes do uso do tóxico e o esclarecimento sobre sua natureza, causa e efeitos.

Há de se instituir com urgência no nosso país uma lei proibindo a fabricação de certos fármacos, como as anfetaminas, usadas na moderação do apetite, que outra coisa não tem produzido senão a mudança do comportamento e a dependência.

Evitar certos programas diversionais, principalmente cinema, televisão, radio e teatro orientados por pessoas despreparadas e sensacionalistas, pois além de imagens distorcidas, podem motivar a curiosidade mórbida.

O jovem sadio tem uma grande significação na recuperação de um viciado, pois eles melhor se entendem quanto a seus problemas e as razões de sua geração, além de falarem uma mesma linguagem.

Quando a prevenção falha só há outro caminho: o tratamento reparador. Sempre em ambulatório e sem custódia legal, garantia constitucional que todo cidadão merece. Um internamento compulsivo pode falsamente proteger uma ou outra pessoa que se sinta aliviada, mas isso não alimentará nenhuma perspectiva animadora num processo de recuperação.

O viciado deve se recuperar dentro de sua própria comunidade. Não acredito que através do modelo tradicional de confinamento, de métodos tão estranhos e terapêuticas tão falíveis, possa ser traçado um perfil cuidadoso da personalidade do toxicômano e dos eventuais motivos da dependência. A vigilância ostensiva e continuada, o recolhimento opressivo e a punição disfarçada em nada contribuirão para sua recuperação, pois esses métodos além de colonizarem o indivíduo, frustram a participação do grupo comunitário, transformando-se num monopólio profissional. Foucault diz que o hospital, como a civilização, é lugar artificial onde a doença transplantada corre o risco de perder sua face mais essencial. O lugar natural da doença é o lugar natural da vida - a família. A prática tem demonstrado isso sobejamente. Se o viciado não é capaz de se curar vencendo ele mesmo os fatores de pressão causadores de seus dramas existenciais qualquer outro método que se queira impor é falso e temerário.

Assim, temos urgentemente de transformar nossa mentalidade punitiva e repressora em atitudes de simpatia e tratamentos em que o alvo seja a recuperação social, através de meios personalizados e reeducadores. Se quisermos fazer a sociedade normal, temos em primeiro lugar reestruturá-la e depois perseguir a natureza dos males que a molestam com critérios científicos e o equacionamento dos fatores antropogênicos.

A inimputabilidade - uma falsa proteção

No momento em que o conceito da irresponsabilidade do drogado for revisto, ele certamente recuperará algo de sua dignidade e de sua auto-estima. E também será muito difícil desacreditá-lo por suas idéias e suas convicções. É justo deixar que ele assuma a responsabilidade por seus atos. Isto é o mínimo que a dignidade humana reclama.

Não sendo a toxicomania o mesmo que "enfermidade mental", não se pode invocar a proteção pela insanidade. Isso não quer dizer que em situações excepcionais não venha o drogado merecer a benignidade de uma pena mais breve.

         Se ele é responsável por sua conduta, ele é responsável pelos seus atos. Chamar um viciado de "enfermo" é uma forma cômoda de escamotear uma questão tão delicada e um meio de enfrentar grave problema existencial com um rótulo muito simplista.

         O mito da alta periculosidade do viciado começa a ser desmascarado. Os valores estatísticos mais sérios estão a demonstrar que a incidência de criminosos entre eles é muito menor que entre os não consumidores da droga.

        Mesmo  que  a inimputabilidade tenha nascido sob a         aparente inclinação humanitária, o titulo de "irresponsável" não passa de um disfarce. Esta "insanidade" como proteção é um absurdo. Não é uma forma de humanizar o sistema criminal. Só se pode aceitar a insanidade como defesa quando em decorrência de um problema grave ou deficiência mental acentuada, o acusado tenha perdido toda sua capacidade        de entender o erro de conduta ou de se determinar conforme os ditames da lei. Tal fato, portanto, não pode ser reclamado em favor de um viciado, pois o crime não é um produto primário dessa entidade nosológica.
        
        À primeira vista isso pode refletir urna descabida exigência ou uma crua insensibilidade. No entanto, o que se propõe é tão-só dar-lhe um grau de responsabilidade compatível com seu entendimento e determinação e, ao mesmo tempo, restituir-lhe algo de sua personalidade e de sua auto-estima, frustrada e subtraída pelos seus conflitos existenciais.

        
        
Por uma solução política          


        Hoje não se pode mais admitir o uso do tóxico como um fato isolado e nem se deve continuar na periferia do problema. Outra coisa: tem de se reduzir o poder sobre o individuo e ampliar nossa capacidade de intervenção sobre o meio. Por isso, o fenômeno exige solução política.
        
  A partir do instante que se entendeu ser a estabilidade do indivíduo e da população mais dependente da satisfação de suas necessidades básicas que propriamente de uma forma isolada de assistência, e que o problema em foco tem sempre na sua origem e nas suas conseqüências um fato social, dai em diante temos de ocupar outros espaços.

Admitir, por exemplo, a relação da Medicina com as formas sociais e políticas do nosso contexto não implica em negar seu caráter científico. Ao contrário, quanto mais ela se torna científica mais ela se politiza pela maior e melhor aplicabilidade no reconhecimento de seus métodos. Virchow já em 1848, dizia que a Medicina era uma ciência social e a Política não era outra coisa senão a Medicina em grande escala.

Para se conquistar a saúde - pelo menos como ela é definida pela Organização Mundial de Saúde (OMS), não basta apenas modificar a relação entre o homem e a natureza, senão, também, mudar as relações sociais. A saúde das pessoas é uma tarefa delas próprias. Elas terão de exigir e lutar por isso. Os técnicos serão apenas os executores propostas.

O terapeuta ao saber que em cada dez pacientes curados, sete voltam a conviver com seus fatores morbígenos, terá dai em diante de despertar sua consciência critica.

Ninguém deixa de manifestar sua profunda frustração com a crescente disparidade entre as possibilidades da ciência e o bem-estar real. Dai a necessidade de uma visão política para se refazer um terreno minado por princípios sociais deturpados e por um processo de flagelação das camadas marcadas pelo sofrimento humano, tudo isso condicionado a um padrão de comportamento que tenha no homem natural e social seu primeiro objetivo.

Incluído em 12/02/2002 23:18:32 - Alterado em 20/06/2022 13:22:05





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