Eutanásia - Aspectos jurídicos


O Direito de Saber a Verdade

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O Direito de Saber a Verdade    


José Geraldo de Freitas Drumond

O homem é um ser vocacionado para ser feliz e colaborar para com a felicidade dos outros, pois ao nascer tem a liberdade de construir o seu projeto de vida, buscando a verdade e o bem.
INTRODUÇÃO

        O homem é um ser vocacionado para ser feliz e colaborar para com a felicidade dos outros, pois ao nascer tem a liberdade de construir o seu projeto de vida, buscando a verdade e o bem. Para Domènech-Llavería e Polaino-Lorente (Manual de Bioética, General, 3ª ed., Rialp, Madrid, 1997), o homem é um ser voltado para a verdade porque está aberto ao conhecimento, com o qual se torna uno. Daí porque a verdade assumida pelo homem significa a correspondência entre o que ele pensa e diz; o que diz e o que faz e, por conseqüência, entre o que ele pensa e o que ele fez. Esta é a equação da verdade. Qualquer discrepância entre uma de suas partes corresponde à negação da verdade, que é a mentira, o erro e a falsidade.

        Desta condição fundamental do ser humano, pode-se inferir que todos nós temos o direito à verdade, já que a abertura ao conhecimento nos é intrínseca e tal conhecimento ao ser assumido torna-se a verdade de cada qual.

        Por outro lado, ao buscar o bem o homem procura conhecê-lo melhor, nisso buscando também a verdade. O bem e a verdade constituem, então, elementos indissociáveis da construção de um itinerário ético coerente da vida humana. Aliás, a verdade nada mais é que a busca incessante da vida, até a morte.

        Ao se escamotear a verdade ou enganar alguém, deprecia-se a própria natureza humana, pois frustra-se o homem naquilo que tem fundamental para o seu crescimento: a permanente busca para o conhecimento e o bem. A medicina, criada para beneficiar o homem, esteve, até pouco tempo atrás, atrelada a uma postura de dominação na relação médico-paciente, onde a beneficência paternalista desconhecia os interesses do paciente, admitindo-se tão somente a verdade do médico ou os interesses da tecnociência.

        A conquista dos direitos do paciente mais recentemente (principalmente depois dos meados deste século), determinou a alvorada da sua autonomia, qual seja, do seu poder de decidir, só ou em conjunto com o seu médico, os destinos de sua própria realidade de saúde.

        Ao direito do paciente em decidir sobre si mesmo corresponde o dever do médico de informa-lo sobre a sua realidade de saúde, a fim de se obter o consentimento para toda e qualquer intervenção diagnóstica ou terapêutica.

        Este consentimento informado representa, então, o direito a saber a verdade sobre si mesmo a fim de formar juízos de valor e possibilitar uma tomada de decisão.

        DIREITO DE SABER A VERDADE

        Nos países mais desenvolvidos da Europa e dos Estados Unidos, a partir do pós-guerra, vem sendo construída, progressivamente, uma edificante obra de direitos dos enfermos. As principais formulações destes direitos são:
        -Declaração dos Direitos das Pessoas Retardadas: Assembléia Geral das Nações Unidas, 20/12/71.
        -Carta dos Direitos dos Enfermos: Associação Norte-americana de Hospitais, 06/12/73.
        -Direitos dos Enfermos: Departamento de Saúde, Educação e Bem-Estar do Governo dos EUA. 02/02/74.
        -Carta do Enfermo usuário do hospital: Comissão de Hospitais da Comunidade Econômica Européia, 06-09/09/79.
        -Carta de Direitos e Deveres do Paciente: Instituto Nacional de Saúde da Espanha, 1994.
       

        Nestas Declarações e Cartas, ao paciente se reconhece o direito em receber de seu médico toda a informação necessária para dar o seu consentimento, com o devido conhecimento de causa, no começo de qualquer processo e/ou tratamento, assim como tem o paciente direito a recusar tratamento, dentro dos limites permitidos pela lei e de ser informado das conseqüências médicas desta sua ação.

        No Brasil, mais recentemente, podemos constatar a presença destes direitos na Carta Brasileira dos Direitos do Paciente, no Código de Ética do Hospital Brasileiro e, finalmente, no Código de Ética dos Conselhos de Medicina. Na Carta Brasileira dos Direitos do Paciente, está consignado que toda pessoa necessitada de cuidados de saúde tem direito a ser informada a respeito do processo terapêutico a que será submetida, bem como de seus riscos e probabilidades de sucesso; de solicitar e receber informações relativas aos diagnósticos, ao tratamento e aos resultados de exames e outras práticas efetuadas durante a sua internação e de ser informada do estado ou da gravidade de sua enfermidade.

        O Código de Ética do Hospital Brasileiro assegura ao paciente e/ou ao seu representante legal o “direito irrestrito a toda informação referente à sua saúde, ao tratamento prescrito, às alternativas disponíveis e aos riscos e contra-indicações implícitas em cada uma destas”.

        O Código de Ética Médica, por seu turno, explicita o direito do paciente à verdade, no artigo 59: É vedado ao médico: “Deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e os objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta ao mesmo possa provocar-lhe dano, devendo, nesse caso, a comunicação ser feita ao seu representante legal”.

        O CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA E O DIREITO À VERDADE

        O que o Código de Ética Médica estatui no seu artigo 59 é até certo ponto contraditório e expõe claramente o conflito entre a beneficência hipocrática e a autonomia bioética. Aquela, baseada no princípio de proporcionar o bem estar do paciente e, por consequência não causar danos, não pode ser exercida de modo absoluto mas respeitando a liberdade e a dignidade de cada pessoa. Para tanto, é necessário definir qual é o “bem” que se deva oferecer ao paciente e, principalmente, respeitar a livre manifestação desde quanto ao juízo do que é melhor para si mesmo.

        Em um paciente adulto e no uso racional do seu juízo, constitui uma depreciação à sua dignidade, escamotear e negar a verdade. Mesmo em pacientes menores de idade, jovens, adolescentes e crianças, há muitas maneiras de oferecer a verdade como forma de beneficiar o próprio processo terapêutico.

        A questão é mais problemática quando se trata de pacientes com diagnóstico de doença grave, de evolução rapidamente fatal e para qual não existem tratamentos conhecidos. Para alguns, o melhor – e nesse ponto o nosso Código de Ética Médica é conivente – é isolar o paciente numa cortina de silêncio, com a cumplicidade da família. Este “pacto de silêncio” tem se revelado, no mínimo, infrutífero e pernicioso ao paciente. Primeiro, porque numa determinada etapa da evolução da doença o próprio paciente desconfia do diagnóstico (principalmente nos dias atuais em que a mídia expõe e explica os sinais e sintomas das doenças e as suas consequências), ou porque já se encontra em tratamento e percebe mudanças evidentes no seu quadro de saúde. Segundo, porque este “pacto de silêncio” inibe e constrange o paciente de se abrir com o médico e outras pessoas e revelar o que sente necessidade, para equacionar o seu destino.

        O escritor francês Bernanos já afirmava que não se pode julgar um homem antes de sua morte “pois é a morte que dá sentido ao nosso destino”. Estas são circunstâncias cruciais da vida humana, onde se pode escrever as últimas páginas da biografia de um homem.

        No entanto, o médico brasileiro não foi educado para administrar a morte de seus pacientes e esta ausência de conhecimento da tanatologia o faz fugir do leito do moribundo com a sensação grave de impotência e fracasso.

        A própria sociedade moderna, tão violenta e violentada, que colore diariamente as telas das TVs e as manchetes dos jornais com o sangue de milhares de pessoas, nega a morte particular: Não se morre mais em casa, mas sim nos hospitais (de preferência nos CTIs) e uma vez defunto, este deve ser pranteado longe de casa (de preferência nos próprios cemitérios onde serão inumados). Assim, a morte se desumaniza e torna-se cada vez mais virtual.

        Instalado no hospital, o moribundo geralmente não tem uma adequada assistência psicológica, recebe os familiares e amigos apenas a determinados intervalos de tempo (quando recebe) e perde a noção do tempo, quando não se acha inconsciente e transpassado por tubos e fios.

        Nestas circunstâncias, subtrai-se ao homem aquilo que ele tem de mais ontológico: o homem tem vontade da verdade, precisa da verdade, para viver e morrer. Aliás, não há verdade maior do que a morte. Todos sabemos que a vida caminha para a morte ou, como diz Ferreira Gullar, “a gente começa a morrer quando nasce”.

        O dilema não se encontra em dizer ou não a verdade ao paciente, mas sim como dizê-la. O médico deve procurar conhecer melhor o fenômeno da morte e não apenas repudiá-la. Afinal, como dizia Oliver Wendell Holmes: “a missão do médico é curar às vezes, aliviar freqüentemente e confortar sempre”.

        Pela sua formação, o médico está sempre esperando que o moribundo mantenha bom ânimo, não seja demasiadamente exigente e deseje viver tanto como puder. Estes seriam os deveres de um paciente “in extremis”. Daí porque o pessoal hospitalar definir como boa ou ruim a morte de quem cumpriu ou não estes deveres.

        Esquece-se que os moribundos também têm direitos, porque têm dignidade e porque são humanos, como os médicos e demais profissionais de saúde: tem direito de saber a verdade, de ter companhia e diálogo com quem quiser e o direito de negar-se a uma intervenção inútil, como bem estabeleceu Leopoldo da Silva Franklin (Direitos e Deveres do Paciente Terminal, Bioética, 1993, 1:139-43).

        E aquele médico que, como ser humano, ainda não teve consciência da sua própria decadência biológica e morte, superando as angústias que isto provoca, jamais conseguirá ajudar alguém a morrer. Daí a tendência em adotar, junto ao moribundo, posturas de enganar ou mentir, distanciar-se ou refugiar-se na aplicação de técnicas agressivas, provocando o “encarniçamento terapêutico”.

        A abordagem deste tipo de paciente deve ser idealmente uma abordagem holística do seu sofrimento, capaz de captar os seus componentes psicológicos, orgânicos, sociais e espirituais, granjeando-lhe a confiança e a amizade, quando a verdade poderá vir à tona, naturalmente. O moribundo necessita de confiança, segurança, carinho, compreensão, amizade, verdade e compaixão. Compaixão que pode significar dizer a verdade ou deixar que ela apareça naturalmente, com solidariedade e amor.

        Rubem Alves, numa de suas crônicas contidas no livro “ O Retorno e o Terno” (17ª ed., 1993, Papirus), descreve as suas sensações ao descobrir uma tela - “O Médico”- num consultório médico onde, doente, aguardava a consulta. Eis alguns trechos de seu relato:

        “É a sala de uma casa. Cena familiar.
        Tudo está mergulhado na sombra, exceto o lugar central, iluminado pela luz de um lampião. Mas a luz é inútil. O lugar mais iluminado é o mais obscuro: uma menina doente. A clareza dos detalhes só serve para indicar o lugar onde o mistério é mais profundo. Quando a luz se acende sobre o abismo, o abismo fica mais escuro. Seus olhos estão fechados, mergulhados num esquecimento febril. Nada sabe do que acontece à sua volta. Por onde andará ela? Infinitamente longe, num lugar ignorado, onde gesto algum poderá tocá-la. Seu braço pende, inerte, sobre o vazio.
        O lampião ilumina a menina doente. Mas os olhos de quem examina a tela com atenção desconfiam e percebem a presença de uma outra luz. Do lampião a querosene sai a luz que ilumina a menina. Mas da menina doente sai a luz que ilumina a cena inteira: luz triste, luz sombria, que inunda a sala com o seu mistério: a luz da morte. Também a morte tem a sua luz.
        O artista escolheu de propósito. Se, ao invés de uma menina fosse um velho, a morte seria uma outra. A morte tem muitas faces. A morte dos velhos, por dolorosa que seja, é parte da ordem natural das coisas: depois do crepúsculo segue-se a noite. A morte dos velhos é triste mas não é trágica. É como o acorde final de uma sonata. O fim é o que deveria ser. Mas a morte de um filho é uma mutilação.
        (...)Num canto, o casal, pai e mãe, imagens de impotência. Nada sabem fazer, nada podem fazer. A mãe está debruçada sobre uma mesa. Seu rosto está mergulhado no vazio. Só lhe resta chorar. O marido, de pé, pousa a mão sobre o ombro da esposa. Mas imagino que ela não a sente. Naquele momento ela não é nem esposa e nem dona de casa: é mãe, apenas mãe. O gesto do marido, que quererá dizer? Será uma tentativa de consolo, como se dissesse: “Eu estou aqui”? Pobre consolo! Ou será o contrário, uma discreta busca de apoio, como se dissesse: “Também eu estou desamparado!”? Tudo é uma despedida pronta a cumprir-se. E o amor, a coisa mais alegre, se revela como a coisa mais triste. Diante da morte, o amor ganha cores trágicas.
        (...)Ao lado da menina, um estranho, assentado: o médico. Pois o médico não é um estranho? Estranho sim, pois não pertence ao cotidiano da família. E, no entanto, na hora da luta entre o amor e a morte, é ele que é chamado.
        O médico medita. Seu cotovelo se apóia sobre o joelho, seu queixo se apóia sobre a mão. Não medita sobre o que fazer. As poções sobre a mesinha revelam que o que podia ser feito já foi feito. Sua presença meditativa acontece depois da realização dos atos médicos, depois de esgotados o seu saber e o seu poder. Bem que poderia retirar-se, pois que ele já fez o que podia fazer... Mas não. Ele permanece. Espera. Convive com a sua impotência. Talvez esteja rezando. Todos rezamos quando o amor se descobre impotente. Oração é isto: esta comunhão com o amor, sobre o vazio... Talvez esteja silenciosamente pedindo perdão aos pais por ser assim tão fraco, tão impotente, diante da morte. E talvez sua espera meditativa seja uma confissão: - Também estou sofrendo...
        Amei este quadro a primeira vez o vi, sem entender. Talvez ele seja a razão porque, quando jovem, por muitos anos, sonhei ser médico. Amei a beleza da imagem de um homem solitário, em luta contra a morte. Diante da morte todos somos solitários. Amamos o médico não pelo seu saber, não pelo seu poder, mas pela solidariedade humana que se revela na sua espera meditativa. E todos os seus fracassos (pois não estão, todos eles, condenados a perder a última batalha?) Serão perdoados se, no nosso desamparo, percebermos que ele, silenciosamente, permanece e medita, junto conosco.
        Hoje o quadro já não mais se encontra nas salas de espera dos consultórios médicos. A modernidade transferiu a morte do lar, lugar do amor, para as instituições, lugar de poder.
        E os médicos foram arrancados desta cena de intimidade e colocados numa outra onde as maravilhas da técnica tornaram insignificante a meditação impotente diante da morte”.

        “Na minha hora final, nos meus instantes derradeiros, quero a presença de alguém que possa me escutar sem que eu tenha necessariamente de falar e cuja presença signifique confiança, segurança e tranqüilidade. Enfim, na hora da minha morte, desejo a lucidez suficiente para despedir da vida, através do sorriso de um rosto amigo”. (José Geraldo de Freitas Drumond)





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